sábado, 29 de junho de 2013

MUNDO CÃO - por Rafael F. Vianna

Existe um mundo subterrâneo que quase ninguém conhece. Um mundo onde regras de conduta social não existem, onde a dignidade é uma estranha desconhecida, onde a lei é sobreviver, onde não compreendemos quem vive ou não, um lugar cheio de monstros, infestado de faltas e ausências, coroado pela violência mais atroz. Um mundo onde nem um cachorro vira-lata aguentaria muito tempo.

Existe o nosso mundo, onde trabalhamos, conversamos, assistimos à televisão, almoçamos e voltamos para casa. Nos chocamos com as notícias, falamos mal da vida dos outros, sentimos medo da criminalidade, reclamamos de tudo que deveria ser feito, dormimos e levantamos dia seguinte para continuar nossas vidinhas medíocres, nossos afazeres intermináveis.

O primeiro mundo convive com o nosso, bem diante de nossos olhos, mas com tempo suficiente para desviarmos o olhar e não enxergarmos. Já falei em meus livros sobre lugares abandonados por Deus que ficam não muito distante daqui, os quais não queremos ver ou saber que existem. Mas um dia o submundo nos toca, nos chama, nos choca com sua existência.

E alguns são mais lentos para desviarem o olhar, mais ingênuos e imaturos para tentarem modificar o submundo. Tarefa impossível, pois ele não segue nossas regras, nossa lógica, nossos sonhos. Meu dia foi ontem novamente. Estava com um grande amigo Delegado de Polícia saindo de um bom restaurante no bairro Cabral, em Curitiba, quando avistamos uns trinta mendigos bebendo em uma praça. Era muita gente, muito colchão, muita fumaça, muitas roupas velhas para não darmos uma olhada no que estava acontecendo.

Mas e quando vimos? O que fazer? Abordar todas as pessoas ali presentes? Chamar apoio? Comunicar a polícia militar? Apoio e polícia militar para fazermos o quê? Revistarmos todos os bolsos furados e as roupas fedorentas que vestiam? Prendermos todo mundo? Pelo quê? Eles não estavam fazendo nada além de beber e dormir na praça… Mandar eles circularem? Ligar para o socorro social da prefeitura? Quantos aceitariam ir para algum abrigo? Quantos poderiam ser atendidos? Quantos estavam em condições de conversar em razão do efeito da cachaça?

Com toda certeza era melhor não ter parado. Com certeza era melhor depois de ter parado ter virado as costas. Com toda certeza era melhor não sentir o que sentimos. Mas no meio dos trinta homens maltrapilhos e bêbados vimos uma criança de 10 anos. O menino estava lá, sentado, quieto, sozinho em seu mundo.
 

Muito infeliz esta minha mania de não aceitar a realidade. Por que meu espírito simplesmente não aceita as coisas como são, sempre foram e, pelo que tudo indica, sempre serão? Tinha acabado de jantar bem, conversado sobre amenidades, dado algumas risadas. Por que fomos parar para ver aqueles mendigos, meu amigo? Ninguém se importa com eles, ninguém enxerga-os de verdade, ninguém quer saber. Por que paramos se não tínhamos solução para nada?
 
Não sei por que paramos, mas o fato é que paramos. E eu vi a criança. Um menino de 10 anos no meio de homens que vivem no submundo, com suas regras, seus desejos depravados, sua selvageria. Uma criança em um mundo pesado demais, com regras brutais demais, com homens bêbados demais, onde há sujeira demais. Não acredito que as pessoas que vivem no submundo escolheram estar lá, acho que ninguém merece viver lá, não culpo ninguém que lá se encontra. Não acho que no submundo existem apenas pessoas de má índole ou caráter, não estou falando do submundo da criminalidade, não estou etiquetando mendigos como criminosos. Lamento pelas vidas que nunca existirão plenamente. Estou apenas afirmando que quem vive nessa outra dimensão segue as regras dessa dimensão. A regra no submundo é sobreviver, a qualquer custo, nada mais. Não há amenidades lá! E uma criança não pode estar nele.
 
A decisão foi imediata: tirei o menino do meio dos mendigos e perguntei onde era sua casa. Iria levá-lo para casa, comunicar o conselho tutelar e prender seus pais por abandono de incapaz se fosse o caso.
 
Mas no caminho perguntei ao menino sobre sua família, sua casa, seus estudos, sua vida, seus sonhos, seus medos, seus desejos, se sabia dos perigos que estava correndo. As respostas do menino mudaram tudo.
 
Ele vivia no submundo, um mundo cão, onde poucos sobreviveriam algumas horas. Sua mãe estava presa porque tinha matado seu pai na sua frente, em casa, na mesa de jantar. Sua irmã também estava presa, mas por furto. Seu irmão tinha sido morto pela polícia. Ele morava no meio do lixo, em um casebre com a avó, uma velhinha que apenas exigia que ele estudasse. E ele estava matriculado em uma escola pública, sempre fazia as tarefas de casa e, assim, podia sair quando quisesse. Desde que voltasse para casa até à meia-noite.
 
Acho que eu também sairia de casa naquelas condições. Ao menos para não lembrar da cena de meu pai morto com diversas facadas no pescoço e de minha mãe sendo levada pela polícia. Sairia para esquecer da fome, para não sentir o cheiro do lugar, para andar e ver que existe um outro mundo.
 
Que diferença o dinheiro que gastei no meu jantar poderia fazer para aquela família. Que desgraça pensar nisso. Mundo cão! E tão perto de nós...

terça-feira, 25 de junho de 2013

Falso debate sobre a PEC 37 - Isto É

Texto de Paulo Moreira Leite
 
O debate em torno da PEC 37 ocorre num momento especialmente instrutivo para quem se preocupa com a preservação das instituições democráticas.
 
Só para você ter uma ideia do que está acontecendo.
Dias atrás, tivemos um mutirão de 158 promotores. Os jornais e emissoras de TV disseram que sua finalidade era combater a corrupção. O próprio Roberto Gurgel, procurador-geral da República, deu um esclarecimento em outra linha: "O MP está mobilizando a sociedade no sentido de mostrar que o que se deseja com a PEC 37 é concentrar as investigações num único órgão do Estado, a Polícia. É um retrocesso gigantesco para a persecução penal e para o combate à corrupção.”
É grotesco.
O procurador-geral admite que o Ministério Público fez prisões e operações de busca com a finalidade de fazer propaganda de um ponto de vista político e pressionar o Congresso. O Estado de S. Paulo, o mais antigo dos grandes jornais do país, diz que é isso mesmo – e critica Gurgel, em editorial.
“Se fosse apenas uma demonstração de eficiência dos Ministérios Públicos (MPs) estaduais e da Procuradoria-Geral da República no cumprimento de suas atribuições funcionais, o mutirão contra a corrupção - integrado por 158 promotores - mereceria aplauso. Infelizmente, porém, ele foi realizado com propósitos corporativos e políticos.” 
Disse ainda o jornal: “Mais do que um ato de protesto, essas operações midiáticas são uma verdadeira tentativa de retaliação contra políticos, por parte do MP.”
É isso, meus amigos: “uma tentativa de retaliação contra políticos.” Quem quer retaliar os políticos?
Até onde eu sei, quem faz isso é o eleitor, em urna. Retalia quem não gosta, promove quem agrada e dá uma chance a quem levanta esperanças. Fazemos isso pelo voto em urna, soberano, origem dos poderes da nação. 
É assim nas democracias, o pior regime que existe com exceção de todos os outros. 
Vamos pensar um pouco mais. Nesta operação exemplar, tivemos dezenas de prisões, operações de busca, e até dois parlamentares paulistas com seus telefones grampeados, em algo que é uma campanha marketing. Não se iluda. Em poucos dias, o saldo dessa operação de “demonstração” estará nos jornais, um punhado de políticos será acusado a partir de informações vazadas e o país estará estarrecido diante de mais um escândalo.
Sei que a corrupção existe e que é preciso que seja punida e investigada.  Mas a perseguição política não leva a parte alguma.
Seleciona alvos, define adversários e escolhe suas vítimas ao sabor de opções que não têm caráter técnico. 
Só para dar um exemplo, que todos podem lembrar: não é curioso que o celebre mensalão mineiro, pioneiro e original, iniciado nas eleições de 1998, só tenha sido investigado anos depois que se apurou o mensalão petista? 
E não é curioso que até ministros admitem que o interesse da imprensa – uma instituição privada, com interesses próprios e visão política própria – tenha interferido nesse comportamento?
Não se deve generalizar uma discussão que não tem mocinhos nem bandidos, mas é preciso entender o principal: estamos assistindo a uma disputa de garantias constitucionais e direitos democráticos. Este é o debate em torno da PEC 37.
Não sou em quem diz isso, mas a seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, que acaba de criar uma Comissão de Defesa da Constitucionalidade das Investigações Criminais. Procurando esclarecer as coisas, o advogado Marcos Costa, presidente da OAB-São Paulo apoia a PEC 37 e explica, em entrevista ao Estado de S. Paulo de hoje:
"A PEC não quer restringir os poderes do Ministério Público, cujo papel é relevantíssimo e está claramente estabelecido pela Constituição Federal de 88. Na verdade, propõe restabelecer a imparcialidade na fase de investigação, segundo a qual a Polícia Judiciária (Civil e Federal) investiga, o Ministério Público denuncia, a Advocacia faz a defesa e o Judiciário julga."
Para Costa, "quem acusa não pode comandar a investigação, porque isso compromete a isenção, quebra o equilíbrio entre as partes da ação penal".
A PEC 37 devolve à polícia o direito de investigar uma denúncia criminal.
Já ao Ministério Público caberia  determinar a abertura de uma investigação e apresentar uma denúncia à Justiça, se for o caso. 
Por quê? Como ensina o mesmo Estadão: “No Estado de Direito, quem acusa não deve ter a prerrogativa de investigar, sob pena de se pôr em risco o devido processo legal e ferir liberdades públicas e individuais.”
O problema é que vivemos hoje uma situação em que essas funções estão embaralhadas. Temos, assim, uma situação estranha, em que o trabalho da polícia é diminuído e dispensado, em nome da supremacia do Ministério Público. Vamos ver alguns casos realmente exemplares.
Como é fácil de comprovar pela leitura dos autos da ação penal 470, várias conclusões da Polícia Federal – sobre os empréstimos ao PT, sobre o papel dos dirigentes partidários e ministros, contribuições de empresas privadas – não foram devidamente respondidos nem considerados pela denúncia.
Uma leitura possível  é que se considerou o que interessava – e se dispensou aquilo que não ajudava na tese da acusação. 
Outro aspecto. Os doadores privados do mensalão foram excluídos da denúncia e nenhum se sentou no banco dos réus. Entregaram  milhões de reais, informa a Política Federal e também a CPMI dos Correios. Foram seletivamente deixados de lado. Mesmo documentos oficiais não foram levados em conta, no esforço para denunciar que houvera desvio de dinheiro público.
Na morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel, tivemos duas conclusões opostas. A Polícia Civil de São Paulo concluiu que foi crime comum. A pedido de Geraldo Alckmin, uma nova equipe policial, com uma delegada de outra área, refez o inquérito e chegou à mesma conclusão. A Polícia Federal, num trabalho realizado a pedido do então presidente Fernando Henrique Cardoso, também. 
Mas o Ministério Público diz que foi um crime encomendado.
Resultado: os réus são acusados de um tipo de crime que contraria frontalmente a conclusão de três investigações policiais. Muitos já foram até condenados em nome do crime encomendado.
Nem vou entrar no mérito desses casos específicos, embora tenha uma opinião conhecida a respeito.
Mas é difícil negar que, ao evitar a separação entre o trabalho de investigar e o de acusar, a legislação deixa uma porta aberta para abusos.
É simples como uma fábula infantil: a parte que acusa não pode estar contaminada nem envolvida com o trabalho de investigação.
Eu não posso ter a função legal de encontrar aquilo que quero procurar. É absurdo.
Cabe à acusação levantar as hipóteses que considerar cabíveis numa denuncia e exigir que todas sejam investigadas e examinadas com rigor. Os promotores podem mandar a polícia refazer o trabalho, reexaminar suas conclusões e ir atrás de novos indícios.
Não podem, no entanto, substituir a polícia.  Não podem ocupar seu lugar quando discordam da investigação.
O Estadão escreveu que a PEC 37 merece ser aprovada.
Conheço opiniões que defendem uma outra proposta, que preserve o poder de investigação da polícia, mas assegure que os promotores possam supervisionar o trabalho.
Observadores céticos de Brasília julgam que é tudo um teatro, mais uma vez.
Se o MP faz um mutirão para ameaçar os parlamentares, estes fingem que irão colocar a PEC 37 em votação como uma forma de amansar o Ministério Público.
Aqueles que têm motivo real para temer uma investigação bem feita se escondem por trás das garantias fundamentais para assegurar a própria proteção.
Sentem-se chantageados e respondem com a mesma arma.
Mas seria bobo desprezar os aspectos políticos do debate.
As democracias justificam sua existência porque garantem os direitos a todos e só condenam uma pessoa depois que sua culpa foi inteiramente provada. A separação de atribuições é uma forma de a própria sociedade controlar o que é feito e impedir abusos.
O predomínio de uma força sem controle é o caminho mais fácil para o abuso em que se condena com base em indícios, em suposições, em deduções ou com base em denúncias arrancadas daquele jeito tão feio e tão selvagem que anos depois é preciso fazer Comissões da Verdade para descobrir um pouco, mas só um pouco, daquilo que havia por trás de tanta mentira e tanta brutalidade que envergonha a todos, não é mesmo? 

quarta-feira, 19 de junho de 2013

COMO AJUDAR?

Muitas pessoas têm a intenção de ajudar a sociedade de alguma maneira, mas não sabem como. Existem diversos projetos, ações, voluntariados e campanhas, mas é difícil escolher em qual projeto se engajar e como atuar. Não podemos doar muito dinheiro, nem muito tempo, nem assumir muitos compromissos. No entanto, sentimos que poderíamos ajudar de alguma forma.
Pois a melhor maneira de ajudar é mudar os seus atos diários. Não precisamos esperar um grande evento para fazer o que achamos certo e para sermos solidários. Prefiro aqueles que não participam de projeto algum, mas que são solidários, bondosos e respeitosos no seu dia a dia. Ser voluntário em todos os momentos é a melhor forma de aperfeiçoar a nossa sociedade e a segurança pública.
Contudo, existem projetos de voluntariado que aglutinam pessoas dispostas e de boa vontade, o que facilita o caminhar, a reflexão e a realização de ações maiores. A melhor forma de escolher um para você participar é identificar qual é seu foco principal de ação e se o projeto lhe agrada. Você precisa concordar com o projeto, com suas metas, com sua metodologia de atuação, com suas finalidades. Você precisa se sentir útil e bem no ambiente em que vai atuar.
Já a melhor forma de continuar no projeto é você não criar grandes expectativas sobre ele e suas realizações, pois ele é formado por pessoas normais, com seus problemas, suas limitações e suas vaidades. Isso faz parte em qualquer empreitada na qual o ser humano toca.
Um dos projetos que escolhi para colaborar é o Educação e Apoio à Maternidade, do Programa Ciranda de Pais, pois sua finalidade consiste em orientar e formar pais (com extrema dificuldade social, econômica e financeira) para bem educar seus filhos e para planejar e pensar a família.
Acredito que apenas o planejamento familiar pode estancar o problema da criminalidade e que atos simples adotados pelas mães e pais podem contribuir e modificar a segurança pública no futuro. O simples fato dos pais participarem da vida escolar dos filhos cria uma relação de afeto e confiança, que pode influenciar as relações sociais. As crianças passam a criar valores positivos que as fazem compreender a importância de se viver em sociedade, com outras pessoas. Isto é segurança pública.

sábado, 15 de junho de 2013

Delegado Rafael Vianna preside mesa na palestra de Orlando Zaccone

 
Durante o I Congresso Internacional em Ciências Criminais - "A Crítica Criminológica ao Direito Penal", realizado pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA, o Delegado Rafael Vianna presidiu a mesa durante a palestra "Pacificação da Morte: autos de resistência e homicídio coletivo no Rio de janeiro", proferida pelo Professor e Delegado de Polícia Civil do Rio de Janeiro Orlando Zaccone.
Zaccone também é autor do livro "Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas" e seu trabalho já foi citado em outras postagens deste blog:
 
 

O Coordenador do Congresso foi o Professor Doutor Maurício Dieter e a palestra também contou com a participação do Delegado de Polícia Civil do Paraná Guilherme Rangel.
 

domingo, 9 de junho de 2013

PEC 37 e O PODER DE INVESTIGAR - Por Rafael F. Vianna


Muitos colegas delegados de polícia e amigos promotores e advogados vem me perguntando o que acho da PEC 37 e do poder de investigação do Ministério Público. Não gosto de discutir assuntos em que imperam as paixões corporativas e os interesses de classes, pois pouco se constrói neste tipo de discussão. Ao contrário, criam-se mágoas e mal entendidos que perduram, às vezes, por décadas.

Acredito, aí sim, em um diálogo em que visões de mundo são apresentadas de forma aberta, sem dogmas ou verdades acabadas, em que ambos os lados estão dispostos a reconhecer suas falhas e limitações. Observe-se que não prego qualquer tipo de neutralidade axiológica ou desinteresse político - tomando o conceito de política como organização do poder e escolha dos nossos rumos como sociedade; e não como política-partidário-classista, entenda-se bem – mas apresentarei os fundamentos das minhas visões de mundo, uma vez que acredito em um sistema maior do que meu simples interesse salarial, de classe ou de poder momentâneo enquanto estiver ocupando o cargo de Delegado de Polícia. Temos que tentar pensar como cidadãos, como se não estivéssemos em nossos cargos, o que esperamos para nossos filhos quando não estivermos mais aqui.

E para iniciar a apresentação de meu posicionamento, tenho que esclarecer, para aqueles que não me conhecem ou nunca leram nada do que escrevo, que sou um questionador inveterado, cheio de inquietações, um insatisfeito com tudo que há de errado com meu espírito e no mundo, um livre-pensador cheio de dúvidas, mas com posicionamentos fortes quando acredito em algo, mais para liberal do que para retrógrado e mais progressista do que tradicionalista, pragmático e idealista na mesma proporção.

Feitas as apresentações e partindo de uma reflexão demorada, um pouco de leitura e algumas discussões longas com estudiosos do tema, abordarei alguns questionamentos que envolvem a PEC 37 e o poder de investigação.

O primeiro aspecto dessa discussão toda em torno da PEC 37 é que ela envolve paixões corporativas e que isso é inacreditavelmente prejudicial para qualquer sociedade organizada. Ela ganhou um contorno classista que atualmente é utilizado como moeda de troca entre políticos, perdendo-se a essência da discussão.

Quando discutimos o poder de investigar, assim como quando discutimos a unificação das polícias, discutimos o que esperamos da nossa vida em sociedade e das nossas liberdades.

Não existe poder maior do que o poder de investigar. É a polícia civil que chega ao local do crime, reconstrói os fatos, interroga suspeitos, indaga testemunhas. Investigar é ter o poder de conhecer o mundo real, como as coisas acontecem de fato, como serão transportadas para o papel, como chegará ao conhecimento de todos aqueles que não podem viver a crueldade do mundo das ruas. Nenhum crime é exatamente da forma como chega aos tribunais, nenhuma história é exatamente - em todos os seus detalhes, razões e motivações – como a dinâmica que aparece no processo. Investigar é construir vidas, destruí-las, reconstruí-las, salvá-las.

Quem investiga um crime escreve a história e não há poder maior do que esse. Quando falam em unificar as polícias civil e militar, esquecem que se criará uma força incontrolável, que não terá concorrentes nas ruas, que poderá montar as vidas das pessoas da forma que bem entender. A fiscalização mútua e concorrente que existe nas ruas entre as diversas forças policiais é que impede as injustiças e os abusos.

É evidente que existem pessoas boas que investigam, pessoas que não cometem abusos, que agem estritamente dentro da legalidade, que são exemplos de integridade. Mas não podemos pensar o sistema a partir dessas pessoas, pois a função de investigar e o poder que vem com isso transforma o espírito de qualquer ser humano. O poder de fato da investigação traz memórias atávicas, desperta instintos primitivos, nos transforma em predadores-caçadores correndo atrás da presa. É por isso que a polícia é tão fascinante e tão perigosa. É por isso que muitos policiais se perdem no caminho, é por isso que precisamos cuidar muito bem da formação e da carreira de nossos policiais.

Já escrevi artigos sobre a essência da polícia (http://delegadorafaelvianna.blogspot.com.br/2013/02/a-essencia-da-policia.html, a razão de existir do direito penal (http://delegadorafaelvianna.blogspot.com.br/2013/02/o-direito-penal-para-nos-salvar.html) e o que você precisa para ser policial (http://delegadorafaelvianna.blogspot.com.br/2013/03/para-ser-policial.html). Não posso reproduzir esses artigos na íntegra aqui, mas recomendo que todos os leiam antes de nos aprofundarmos no assunto ora discutido. O que se retira do que foi dito até agora é que a polícia, entendida como “poder de investigar”, traz seus perigos intrínsecos e que esses perigos não vem com os policiais, mas com qualquer pessoa que ocupe esse papel de inquisidor/investigador e tenha o poder dele decorrente.

O Ministério Público, quando passar a investigar como a polícia, terá seus desgastes, enfrentará os problemas das ruas e do submundo, conhecerá seus membros “abusadores” e que se perderão. Não há espírito humano que não sofra com as tentações do poder, do domínio de contar a história, de montar vidas, de decidir destinos. Poucos têm coragem de falar sobre isso, mas o não falar, o não questionar, o não refletir sobre como minimizar esses efeitos condenam nossos jovens policiais a uma vida desgraçada, sofrida, cheia de problemas de convivência. Muitos policiais, muitos mesmo, retiram a própria vida porque não conseguem conviver com as tragédias que presenciam, não conseguem mais viver com suas famílias, não conseguem entender onde perderam sua personalidade e o que eram antes de entrarem para a polícia.

Pensar o sistema de persecução penal significa pensar o que queremos para nossas liberdades, para nossa segurança, para nossa sociedade. Não tenho dúvidas de que a segurança pública seria mais facilmente administrada em uma ditadura, não tenho dúvidas que descobriríamos e prenderíamos mais autores de crimes se a tortura fosse autorizada, não tenho dúvidas que nossa polícia seria mais eficiente se não existissem as regras do direito penal e do processo penal. A polícia funciona melhor em uma ditadura, a investigação é mais eficiente em um estado totalitarista, a sensação de segurança da população é maior quando um órgão de investigação é forte, onipresente e onipotente.

E aí é que existe uma escolha social, que precisa ser escancarada quando discutimos quem poderá investigar e como poderá investigar, quando pensamos em unir as polícias e quando pensamos em quem irá fiscalizá-la. Pagamos um preço para vivermos em uma sociedade livre, em uma dita democracia (ainda que duvide que ela exista de fato), em um Estado de Direito. E esse preço talvez seja que alguns inocentes serão mortos e que alguns crimes ficarão sem solução quando tivermos que escolher entre torturar ou não descobrir. Talvez esse preço seja a ineficiência e a demora quando tivermos que escolher entre o controle judicial das interceptações telefônicas, das prisões e das investigações; ou a total liberdade de atuação para quem investiga. Não sei ao certo qual eu escolheria se meus filhos estivessem como reféns, mas é para conter as paixões e instintos humanos em épocas de tormentas que o Direito é pensado em épocas de razão.

O Ministério Público foi criado para ser nossa razão imparcial (o quanto isso puder existir), para acusar, para controlar, para fiscalizar tudo que pode não corresponder ao nosso pacto social, às nossas escolhas de vida em grupo, ao que pensamos ideal quando criamos nosso Estado-Nação. A aprovação da PEC 37 não mudará nada na função do Ministério Público, no que pensamos como função para ele, na sua imensa importância para nos manter como sociedade organizada e civilizada.

Discutir a PEC 37 nesses termos é inconsequente e uma afronta a tudo que o Ministério Público é e ainda pode ser. Fazer com que ele passe a viver as paixões da investigação, suas dificuldades, seus desgastes, seus submundos indizíveis, é criar uma nova polícia, que se transforma pela sua função, independente de quem esteja ali.

A polícia precisa de controle, de fiscalização de suas investigações, de análise imparcial e distante do que produziu. Nós como cidadãos precisamos que alguém faça isso por nossas liberdades, pela nossa segurança. Escolhemos assim quando organizamos nossa vida em sociedade. Eu desejo que exista alguém para desempenhar esse papel quando eu for o investigado, quando a polícia me abordar na rua e puder mudar a minha vida. Quem investiga poderia tudo, caso não existissem advogados, juízes e promotores que realizam o controle da legalidade de tudo que é produzido.

Se o Ministério Público e o Judiciário começassem a investigar, quem nos garantiria a legalidade e não apenas o argumento final da força de fato? Buscar investigar é buscar um poder atraente, mas perigoso; é esquecer que ninguém está livre das tentações, é esquecer que um dia podemos ser o investigado, que aqueles que amamos não ocupam o mesmo cargo do que nós, é esquecer que pensar nossa sociedade não é uma questão classista.

Além disso, a especialização das funções melhora a qualidade do serviço, possibilita o aperfeiçoamento das atividades, estabelece os limites, delimita os controles e freios. Investigar não é somente achar ou ter boa vontade. Existem técnicas, estudos, cursos, preparação. Ainda assim, a polícia falha, sofre, se desgasta, está eternamente buscando a intangível verdade.

Realmente não consigo entender o que se discute com essa PEC 37, pois o Ministério Público continuaria cumprindo a sua missão, com as mesmas ferramentas que a Constituição dispôs para ele, com o mesmo poder de realizar o controle externo das polícias e fiscalizar o cumprimento da lei. É evidente que para fazer isso ele necessita ouvir pessoas, coletar elementos de convicção, requisitar diligências. Mas isso é muito diferente de investigação criminal, de trabalho de polícia, de interceptação telefônica, de busca e apreensão, de buscar a “verdade” e encontrar o autor do crime: isto é investigação policial.

Certo é que enquanto se faz todo esse teatro, essa ilusão de discussões apaixonadas e convictas, os policiais continuam morrendo e esperando que a lei também valha para eles, os promotores continuam lutando para desafogar seus gabinetes com problemas insolúveis e a população continua esperando que uma mudança legislativa acabe com todos os seus problemas e suas angústias. Vamos longe assim…
Por Rafael F. Vianna

quinta-feira, 6 de junho de 2013

PROGRAMA CIRANDA DE PAIS E A FORMAÇÃO DE PAIS

Tenho falado muito em minhas entrevistas e debates (como já tinha escrito em meu livro e em meus textos) sobre a importância da primeira grande área da segurança pública. Essa primeira grande área trata das questões de fundo, estruturais, existenciais e filosóficas - ainda que práticas - da vida, do indivíduo e da segurança pública. Para pensarmos uma nova segurança pública, temos que pensar uma nova sociedade, com novos valores, com uma nova cultura, mais solidária, bondosa e próxima do ser humano.
Todos nós temos funções essenciais e decisivas neste processo. Resolvi mostrar nesta coluna, para àqueles que não acreditam, que há muitas pessoas fazendo a diferença, redescobrindo a razão de viver em sociedade e escolhendo o bem. Muitos exemplos podem servir para você leitor também participar de um projeto que contribua para a sociedade.
O Projeto Ciranda de Pais, desenvolvido pela professora Cristiane Arns de Oliveira, a partir dos resultados de sua tese de doutorado em Ciências da Educação, realizado na Universidade de Fribourg (Suíça), é um desses projetos que contribuem de forma decisiva para uma segurança pública melhor, ainda que esse não seja seu objetivo precípuo.
A finalidade do projeto é promover e enriquecer as relações entre escola e família para prevenir o fracasso social e escolar dos alunos. O objetivo geral é criar, com a família e a escola, estratégias de prevenção aos problemas relacionados à violência, drogas e delinquência nos espaços escolares e não escolares. Levando os pais para dentro do colégio, com palestras e atividades nos finais de semana, pretende-se aproximar pais e filhos, fazendo com que a família saiba o que está acontecendo com seu filho e, desta forma, possa discutir e resolver problemas, assim como colaborar com a escola.
Acompanho o projeto há aproximadamente um ano, sabendo de suas dificuldades e limitações, mas acredito que muitos ainda podem agregar conhecimentos e habilidades para melhorá-lo. Profissionais de gestão e administração serão muito bem vindos para pensar a melhor estratégia de implantação e a logística necessária para a ampliação do projeto. Contudo, qualquer pessoa de boa vontade é sempre bem vinda e necessária.
Para melhor conhecer o Projeto basta acessar o site www.cirandedepais.com.br