segunda-feira, 25 de novembro de 2013

PONDERAÇÕES SOBRE O TERRORISMO, DILEMAS MORAIS E CONFLITO DE DEVERES - Por Rafael F. Vianna


Nos últimos anos, estudei muito sobre terrorismo. Esse assunto domina meus estudos, minhas leituras e minhas dúvidas. Minha monografia de conclusão do curso de Direito, na Universidade Federal do Paraná, foi sobre o possível reconhecimento dos grupos terroristas como sujeitos de Direito Internacional Público. Fui durante 04 anos da faculdade monitor da matéria e acreditava, com um pouco de romantismo juvenil, que uma possível solução para o terrorismo era o estabelecimento de um canal de diálogo internacional a partir do qual grupos oprimidos e insatisfeitos com algo poderiam apresentar suas reivindicações e discutir soluções para seus anseios. Cheguei a escrever e publicar, inspirado por Noam Chomsky, um artigo científico sobre a opressão mundial de minorias e grupos excluídos a partir do discurso do medo do terrorismo. Também estudei sobre os interesses econômicos que movimentam a máquina de guerra contra o terror.
Mas minhas pesquisas não se encerraram aí e hoje tenho posições mais evoluídas do que o simples e puro discurso denúncia, romântico e acadêmico, mas impossível de se manter e se confirmar quando cotejado com a realidade. Tornei-me policial, com especial interesse no policiamento internacional e operações de manutenção de paz, cursei diversos cursos de contraterrorismo e peacekeeping, fui conhecer Israel, seu treinamento e seu dia a dia, conheci a Palestina, ainda visitarei outros lugares instáveis do mundo.
Venho dividir meus anseios e dúvidas, venho refletir sobre uma visão que parece ter ficado escondida quando se discutiu a morte do terrorista Osama Bin Laden. É isso que passo a fazer agora.
Hoje, em relação a este tema, tenho três certezas e muitas dúvidas. A primeira certeza é de que na “guerra contra o terror” não existem e não existirão vencedores e vencidos. Todos perderão. Somos todos perdedores. A segunda certeza é de que a guerra contra o terror é real, seja em sua essência ou em suas consequências. A terceira certeza é de que não existe romantismo na guerra e que dilemas morais só existem na prática.
Já as dúvidas são diversas e as exponho sumariamente para contrapor tudo que até agora se discutiu e para estimular uma posterior reflexão individual mais profunda. A primeira dúvida que me angustia e que pareceu margear toda a discussão sobre a morte de Osama Bin Laden, terrorismo e fanatismo religioso, mas que nunca é apresentada de forma clara, é sobre se existe relativismo cultural. E se sim, será que realmente devemos respeitá-lo? Quando falamos que Israel e os Estados Unidos invadem nações, desrespeitam a soberania nacional de muitos e ofendem culturas milenares que deveriam ser preservadas, assumimos que o relativismo cultural é aceitável? Será isso mesmo?
Durante o meu mestrado em Lisboa a aceitação do relativismo cultural foi muito discutida, pois diversos árabes muçulmanos que imigravam para lá mantinham sua cultura tribal de ablação (retirada, mutilação) do clitóris feminino. E aí? Eles têm o direito de exercer sua cultura, sua tradição, manter seus costumes e serem respeitados em suas escolhas? Pode o Estado civilizado português permitir isso? A mulher vítima e os agressores (pai, mãe e marido) concordam com a prática, pois arraigados em sua cultura. Alguns traços religiosos ainda são adicionados a tal prática para perpetuar e fundamentar sua realização. E aí? Crime ou cultura? Devemos ou não impor nossa cultura dita civilizada a esses povos? Temos esta obrigação ou não? A aceitação do fanatismo religioso islâmico passa por esta reflexão e a crítica aos Estados Unidos da América também.
Vejam o caso da França, onde muito se discutiu sobre o direito das mulheres muçulmanas usarem os seus véus (o hijab/jalabib) em escolas públicas. O hijab pode, mas a burka não? Por que um e outro não? Por que um nos choca mais e outro menos, por que até certo ponto devemos respeitar a cultura e a partir de um momento devemos nos impor? Quem diz qual é esse momento? Até que ponto uma cultura diferente nos ofende? Por que a fé deve ser mostrada, escancarada, esfregada em nossas caras? Por que não se pratica simplesmente uma fé silenciosa, privada, interior? Por que mostrar para os outros no que se acredita, por que invadir um lugar que não é mais seu? Sou suspeito para tratar deste tema, pois o ministro da educação francês que proibiu o uso do véu em escolas públicas foi Luc Ferry, uma das mentes mais brilhantes da atualidade, um defensor do humanismo secular. No entanto, observe-se bem, não se pode confundir Islã com fanatismo religioso. Os fanáticos desrespeitam toda história, tradição e conhecimento da grande religião de Alá. 
Quando levamos tais reflexões para o plano internacional o problema não é diminuído. Os países que têm condições de agir têm obrigação de agir ou devem sempre respeitar a soberania de um povo e de seu governo? A ONU e os Estados Unidos respeitaram a soberania e as fronteiras de Ruanda em 1994 e a maioria hutu massacrou a minoria tutsi, um dos maiores e mais terríveis genocídios que a humanidade já viu. O filme “Hotel Ruanda” revela bem o problema daqueles que podem agir e não agem porque têm argumentos de respeito a conceitos acadêmicos construídos longe da vida e da morte. Difícil depois de ver o filme não culpar os Estados Unidos e a ONU por não terem invadido o país e salvo vidas, matando alguns se preciso fosse.
Mas aí está o grande problema de uma discussão como esta: dilemas morais só existem na prática. Não sabemos o que fazer até o momento em que estamos diante de um caso em que só nós podemos escolher. E esta escolha não é entre o certo e o errado, mas apenas entre o mal menor. Sim! Muitas vezes temos que escolher entre o menor mal, pois o “certo” (entendido este como o imperativo categórico de Kant) não nos é ofertado como opção. Atirar ou não atirar? Matar ou deixar que mate? Abater uma aeronave cheia de inocentes ou permitir que ela seja utilizada como arma para matar milhares? Dilemas morais ampliados em conflitos internacionais, mas que na segurança pública também se vivenciam com certa frequência. Acho que eu preservaria as vidas dos inocentes, eu diminuiria os danos, buscaria o mal menor, arriscaria errar, mas não me permitiria a inércia e a passividade.
Jack Bauer, personagem ficcional do seriado 24 horas, diversas vezes nos confrontou com seus dilemas morais, afirmando vez por outra que o maior problema das pessoas comuns é que elas querem viver em tranquilidade, paz e segurança; mas não querem sujar as mãos ou saber como se conquistou o seu grande bem e sua liberdade.
E aí? A lógica utilitarista nos serve? Podemos realmente discutir essa lógica quando se fala em um conflito de deveres? É justo com a pessoa que se encontra em uma situação limite exigirmos dela uma conduta de um super-herói, sendo que provavelmente não teríamos força para assim agir? A resposta simplista da moral não nos serve nesses momentos. Não há justiça quando afastada de tudo que é a vida, quando se condena com uma moral simplista, fechada e irreal. Será que os médicos alemães que matavam aos poucos algumas crianças para impedir que Hitler os retirasse da função e matasse todas de uma só vez podem ser culpados? O certo talvez não seja tão claro nesses momentos e a omissão seja a mais grave escolha que um ser humano pode ter. Não desejo a ninguém viver uma situação de conflito de deveres, mas me parece inaceitável a pura e simples moral eclesiástica e acadêmica “do pronto” em um mundo fácil de viver. Muitos são santos em um local onde o pecado e as tentações não podem entrar.
Quando o direito penal deve agir, culpar e punir? Quando podemos e devemos desculpar? Quando devemos compreender e aceitar que não existem vencedores e perdedores, mas que a omissão é inaceitável? Em que momento deixamos de ser protetores do bem para nos tornarmos parceiros do mal? Quando conseguimos voltar? E se esses momentos forem suficientes para nos transformar? Não tenho certeza de nada, mas me parece que aqueles que poupam os maus condenam os bons e se formos todos boas ovelhas, morreremos nas mãos dos lobos.
Difícil demais uma única e definitiva resposta, mas se aproximarmos os questionamentos acima trazidos para a moral individual e nossas possíveis escolhas, concluiremos que não saberíamos o que fazer e o que escolher. Dilemas morais realmente só existem na prática, no mundo real, e se não quisermos escolher devemos rezar para que Deus nunca nos coloque diante de opções como essas. Por outro lado, condenar uma ação de quem infelizmente lá esteve é cruel demais. Devemos sempre ponderar nossos julgamentos.
Que bom se todos os homens fossem bondosos, que bom se conseguíssemos levar ensinamentos de paz e gentileza para todos os cantos do mundo. Mas isso talvez demore algum tempo e pessoas morrem enquanto isso. Podemos nos omitir ou podemos estar lá para melhor decidir. Podemos apenas criticar ou estar lá para ponderar. Os que decidem hoje, um dia pensaram na liberdade para o mundo, em um mundo melhor, em uma terra livre. Talvez ainda pensem.
Talvez em uma análise macro seja tudo apenas interesse econômico e essa influência seja forte demais para mudar o posicionamento dos homens, mas são sempre esses que decidem no final. Melhoremos os homens, mas enquanto isso - até o objetivo melhor e final - pessoas ainda morrerão e medidas intermediárias devem ser adotadas.
Não defendo os Estados Unidos nem Israel cegamente, não me iludo que eles não guardam interesses indizíveis; não acredito que os Estados do mundo sejam sempre puros em suas ações, mas não me iludo que existisse a possibilidade real de fazer o direito em uma situação de encontro com Osama Bin Laden, um fanático religioso que buscava impor sua fé ao mundo, matando quantos fossem necessários. Que bom que ele não conseguirá o seu intento. Não foram os Estados Unidos que colocaram as palavras em sua boca, ainda que talvez o mundo moldado ao jeito americano de pensar tenha o transformado no que ele era. Ainda assim prefiro o jeito americano para poder criticá-lo.
Por fim, encerro esta breve divagação dividida, este pensar em voz alta, com algumas ponderações: 1ª) que a guerra só guarda alguma beleza - seja moral, ideal ou teórica - quando distante e com total desconhecimento de causa, pois não há opção de atirar ou não atirar quando você está diante do perigo. É puxar o gatilho para não morrer, ainda que seja duro demais para quando estamos distante do dilema moral do autor do fato. 2ª) Eu gostaria que todos fossem bons, gostaria que todos os homens buscassem a evolução pessoal, gostaria que as massas ignorantes não tivessem força para extinguir o pequeno grupo que as conduz, mas isso dificilmente existirá. Sim, os povos mais inteligentes conduzem os mais atrasados, mas avalio se estes, justamente por serem mais atrasados e inconscientes ignorantes, às vezes não se utilizarão de meios perigosos e desleais, cabendo aos justos se protegerem e se anteciparem. Sim, precisamos de cães pastores para nos protegerem dos maus e encontrarmos a bondade. Aqueles que podem agir têm obrigação de agir, pois ainda me parece que quem poupa o mau, condena o bom. Às vezes, todavia, é difícil demais dizer quem é o mau. Ainda assim, a omissão é a única saída que não temos. E o cuidado com o caminho de nossas defesas e pensamentos ditos críticos é a única que temos.

2 comentários:

  1. Muitas questões colocadas, Dr. Rafael, de fato não encontram respostas diretas e fáceis, porém, a reflexão por si só já viabiliza um caminho. Com certeza há um ponto que o Sr. colocou que é fundamental, qual seja, a omissão não é a saída. Disso tenho convicção.

    Atenciosamente,
    Tiago Ferreira.

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  2. Seu texto me fez lembrar algumas vezes do filme "Ameaça Terrorista". Filme que nos coloca frente a frente com a questão dos dilemas morais que vc cita. Se não assistiu, sugiro. Tem no netflix. Abraço!!

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