sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O MENDIGO DA EUROPA


Em frente ao meu apartamento em Lisboa tem um mendigo que mora na rua; em uma barraca feita de papelão, plástico e alguns fios e barbantes.

Venho o observando há semanas pela janela - como Gregor Samsa de Kafka, que após virar o mostro passou a ver a vida acontecer do lado de fora, através da janela. A diferença é que neste caso não sei quem é o monstro e quem apenas vê a vida passar. Meus dias passam, com leituras sem fim; os dele passam, com um nada sem fim.

Há semanas que ele não deixa sua barraca. Nem por um instante ele se afasta de sua casa e de seus pertences. Ele improvisou uma cozinha, lava suas roupas, as estende em um varal que construiu, utiliza o banheiro em uma garrafa plástica e um saco plástico….tudo bem organizado. O banho é meio complicado, pois ele não consegue realizar tal prática muitas vezes na semana. Ainda assim o faz vez por outra. Toda manhã ele se barbeia e toma seu café, não descuidando em lavar a louça logo em seguida.

Há semanas venho observando o mendigo que mora em frente à minha casa na Europa. Os dias dele passam… Todos iguais. Os meus dias também passam. Sou eu quem o observa pela janela; não é ele quem me observa. É a vida dele que é vivida, não a minha em que apenas leio. No entanto, os dias passam para ambos.

Como pode alguém viver assim? Apenas lendo? Apenas vendo os dias passarem? Todos os dias iguais, sem falar com ninguém, sem conhecer sequer uma rua diferente na Europa. Os dias do mendigo passam e ele vê sua vida passar. Como ele consegue, meu Deus? Por que a vida reservou isso para ele? Como pode alguém viver preso sendo tão livre? Ele mora na rua, ama o pouco que tem, cuida das suas coisas de um jeito que eu jamais cuidaria de nada. Ele ama sua rotina, nossa rua, nossa vizinhança, o clima de outono europeu.

Um dia vou conversar com ele, saber como chegou ali, como acredita que vive, como consegue apenas passar. Meu Deus, como ele consegue? Poderia ser andarilho, pedir, conhecer os pontos turísticos, ver pessoas, cometer pequenos furtos para ter alguma emoção. Mas não. Ele fica ali, do lado de fora da minha janela, acordando sempre no mesmo horário, se recolhendo sempre no mesmo horário, almoçando (sabe-se lá o tamanho do estoque de comida que ele tem dentro de sua barraca) sempre no mesmo horário. E eu aqui, o observando, vendo os dias passarem, a vida acontecer, as coisas irem embora, novos dias começarem. E os dias passam. Não deu tempo de falar com o mendigo. Fui embora. Quanta tristeza o ser humano é capaz de suportar…

Um comentário:

  1. Dr., talvez a sua indignação com a situação dele não coadune com a própria realidade dele. Note, a sua reflexão é justificável para a "anormalidade" que vivemos hoje, em que o homem trabalha, trabalha e trabalha; estuda, estuda e estuda, para ter a "paz" desse cidadão que vive sob sua janela...
    Ouvi esse discurso em uma palestra e, sinceramente, ainda não o digeri totalmente, pois me incluo nesse rol de "anormais" dos tempos de hoje, porém, vale a reflexão.

    ResponderExcluir