sábado, 29 de junho de 2013

MUNDO CÃO - por Rafael F. Vianna

Existe um mundo subterrâneo que quase ninguém conhece. Um mundo onde regras de conduta social não existem, onde a dignidade é uma estranha desconhecida, onde a lei é sobreviver, onde não compreendemos quem vive ou não, um lugar cheio de monstros, infestado de faltas e ausências, coroado pela violência mais atroz. Um mundo onde nem um cachorro vira-lata aguentaria muito tempo.

Existe o nosso mundo, onde trabalhamos, conversamos, assistimos à televisão, almoçamos e voltamos para casa. Nos chocamos com as notícias, falamos mal da vida dos outros, sentimos medo da criminalidade, reclamamos de tudo que deveria ser feito, dormimos e levantamos dia seguinte para continuar nossas vidinhas medíocres, nossos afazeres intermináveis.

O primeiro mundo convive com o nosso, bem diante de nossos olhos, mas com tempo suficiente para desviarmos o olhar e não enxergarmos. Já falei em meus livros sobre lugares abandonados por Deus que ficam não muito distante daqui, os quais não queremos ver ou saber que existem. Mas um dia o submundo nos toca, nos chama, nos choca com sua existência.

E alguns são mais lentos para desviarem o olhar, mais ingênuos e imaturos para tentarem modificar o submundo. Tarefa impossível, pois ele não segue nossas regras, nossa lógica, nossos sonhos. Meu dia foi ontem novamente. Estava com um grande amigo Delegado de Polícia saindo de um bom restaurante no bairro Cabral, em Curitiba, quando avistamos uns trinta mendigos bebendo em uma praça. Era muita gente, muito colchão, muita fumaça, muitas roupas velhas para não darmos uma olhada no que estava acontecendo.

Mas e quando vimos? O que fazer? Abordar todas as pessoas ali presentes? Chamar apoio? Comunicar a polícia militar? Apoio e polícia militar para fazermos o quê? Revistarmos todos os bolsos furados e as roupas fedorentas que vestiam? Prendermos todo mundo? Pelo quê? Eles não estavam fazendo nada além de beber e dormir na praça… Mandar eles circularem? Ligar para o socorro social da prefeitura? Quantos aceitariam ir para algum abrigo? Quantos poderiam ser atendidos? Quantos estavam em condições de conversar em razão do efeito da cachaça?

Com toda certeza era melhor não ter parado. Com certeza era melhor depois de ter parado ter virado as costas. Com toda certeza era melhor não sentir o que sentimos. Mas no meio dos trinta homens maltrapilhos e bêbados vimos uma criança de 10 anos. O menino estava lá, sentado, quieto, sozinho em seu mundo.
 

Muito infeliz esta minha mania de não aceitar a realidade. Por que meu espírito simplesmente não aceita as coisas como são, sempre foram e, pelo que tudo indica, sempre serão? Tinha acabado de jantar bem, conversado sobre amenidades, dado algumas risadas. Por que fomos parar para ver aqueles mendigos, meu amigo? Ninguém se importa com eles, ninguém enxerga-os de verdade, ninguém quer saber. Por que paramos se não tínhamos solução para nada?
 
Não sei por que paramos, mas o fato é que paramos. E eu vi a criança. Um menino de 10 anos no meio de homens que vivem no submundo, com suas regras, seus desejos depravados, sua selvageria. Uma criança em um mundo pesado demais, com regras brutais demais, com homens bêbados demais, onde há sujeira demais. Não acredito que as pessoas que vivem no submundo escolheram estar lá, acho que ninguém merece viver lá, não culpo ninguém que lá se encontra. Não acho que no submundo existem apenas pessoas de má índole ou caráter, não estou falando do submundo da criminalidade, não estou etiquetando mendigos como criminosos. Lamento pelas vidas que nunca existirão plenamente. Estou apenas afirmando que quem vive nessa outra dimensão segue as regras dessa dimensão. A regra no submundo é sobreviver, a qualquer custo, nada mais. Não há amenidades lá! E uma criança não pode estar nele.
 
A decisão foi imediata: tirei o menino do meio dos mendigos e perguntei onde era sua casa. Iria levá-lo para casa, comunicar o conselho tutelar e prender seus pais por abandono de incapaz se fosse o caso.
 
Mas no caminho perguntei ao menino sobre sua família, sua casa, seus estudos, sua vida, seus sonhos, seus medos, seus desejos, se sabia dos perigos que estava correndo. As respostas do menino mudaram tudo.
 
Ele vivia no submundo, um mundo cão, onde poucos sobreviveriam algumas horas. Sua mãe estava presa porque tinha matado seu pai na sua frente, em casa, na mesa de jantar. Sua irmã também estava presa, mas por furto. Seu irmão tinha sido morto pela polícia. Ele morava no meio do lixo, em um casebre com a avó, uma velhinha que apenas exigia que ele estudasse. E ele estava matriculado em uma escola pública, sempre fazia as tarefas de casa e, assim, podia sair quando quisesse. Desde que voltasse para casa até à meia-noite.
 
Acho que eu também sairia de casa naquelas condições. Ao menos para não lembrar da cena de meu pai morto com diversas facadas no pescoço e de minha mãe sendo levada pela polícia. Sairia para esquecer da fome, para não sentir o cheiro do lugar, para andar e ver que existe um outro mundo.
 
Que diferença o dinheiro que gastei no meu jantar poderia fazer para aquela família. Que desgraça pensar nisso. Mundo cão! E tão perto de nós...

2 comentários:

  1. Rafael
    Parabéns por expressar a tão dura realidade com tanta clareza.
    Temos que entender que a Vida é assim e o Mundo Cão sempre houve.
    Abraços
    Pedro Marcondes

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  2. É, meu amigo. Difícil saber se é melhor enxergar o lado podre e viver tentando melhorar ou se fazer de cego, ignorando ou ser realmente um cego, ignorante por natureza, sem percepção. A primeira alternativa pode te dar a sensação de consciência social tranquila, por outro lado o êxito nunca virá, é uma dedicação constante e imprevisível; se fazendo de cego e viver a sua vida como se fosse tudo o que se importasse parece ser o mais fácil, mas a gente vê os irmãos em certas situações e não dá "será que era assim que eu deveria estar?" (Racionais); já a pessoa ignorante, as sem percepções, talvez sejam as mais felizes, mesmo estando, as vezes, na pior das situações, pois não enxergam outro mundo, não vê outra opção e algumas vezes, felizmente, a felicidade está num copo de água bem gelado, vida sem luxo e sem ideais mirabolantes. Como diz o filósofo Cortella, precisamos, primeiramente, saber o que importa.

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