quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Namorando com o Suicídio - Texto de J.R. Guzzo

O texto abaixo é forte e provoca duas reflexões inevitáveis: o que faz alguém querer ser policial? E, o que esperam os meios de comunicação (grande parte deles) com suas campanhas contra as polícias e a segurança pública?

Namorando com o Suicídio - J.R.Guzzo
Publicado em 28/01/2013, na Revista Veja.

Se nada piorar neste ano de 2013, cerca de 250 policiais serão assassinados no Brasil até o próximo dia 31 de dezembro. É uma história de horror, sem paralelo em nenhum país do mundo civilizado. Mas estes foram os números de 2012, com as variações devidas às diferenças nos critérios de contagem, e não há nenhuma razão para imaginar que as coisas fiquem melhores em 2013 — ao contrário, o fato de que um agente de polícia é morto a cada 35 horas por criminosos, em algum lugar do país, é aceito com indiferença cada vez maior pelas autoridades que comandam os policiais e que têm a obrigação de ficar do seu lado. A tendência, assim, é que essa matança continue sendo considerada a coisa mais natural do mundo — algo que “acontece”, como as chuvas de verão e os engarrafamentos de trânsito de todos os dias.
Raramente, hoje em dia, os barões que mandam nos nossos governos, mais as estrelas do mundo intelectual, os meios de comunicação e a sociedade em geral se incomodam em pensar no tamanho desse desastre. Deveriam, todos, estar fazendo justo o contrário, pois o desastre chegou a um extremo incompreensível para qualquer país que não queira ser classificado como selvagem. Na França, a ficar em um exemplo de entendimento rápido, 620 policiais foram assassinados por marginais nos últimos quarenta anos — isso mesmo, quarenta anos, de 1971 a 2012. São cifras em queda livre. Na década de 80, a França registrava, em média, 25 homicídios de agentes de polícia por ano, mais ou menos um padrão para nações desenvolvidas do mesmo porte. Na década de 2000 esse número caiu para seis — apenas seis, nem um a mais, contra os nossos atuais 250. O que mais seria preciso para admitir que estamos vivendo no meio de uma completa aberração?
Há alguma coisa profundamente errada com um país que engole passivamente o assassínio quase diário de seus policiais — e, com isso, diz em voz baixa aos bandidos que podem continuar matando à vontade, pois, no fundo, estão numa briga particular com "a polícia", e ninguém vai se meter no meio. Essa degeneração é o resultado direto da política de covardia a que os governos estaduais brasileiros obedecem há décadas diante da criminalidade. Em nenhum lugar a situação é pior do que em São Paulo, onde se registra a metade dos assassinatos de policiais no Brasil; com 20% da população nacional, tem 50% dos crimes cometidos nessa guerra. É coisa que vem de longe. Desde que Franco Montoro foi eleito governador, em 1982, nas primeiras eleições diretas para os governos estaduais permitidas pelo regime militar, criou-se em São Paulo, e dali se espalhou pelo Brasil, a ideia de que reprimir delitos é uma postura antidemocrática — e que a principal função do estado é combater a violência da polícia, não o crime. De lá para cá, pouca coisa mudou. A consequência está aí: mais de 100 policiais paulistas assassinados em 2012.
O jornalista André Petry, num artigo recente publicado nesta revista, apontou um fato francamente patológico: o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, conseguiu o prodígio de não comparecer ao enterro de um único dos cento e tantos agentes da sua polícia assassinados ao longo do ano de 2012. A atitude seria considerada monstruosa em qualquer país sério do mundo. Aqui ninguém sequer percebe o que o homem fez, a começar por ele próprio. Se lesse essas linhas, provavelmente ficaria surpreso: "Não, não fui a enterro nenhum. Qual é o problema?". A oposição ao governador não disse uma palavra sobre sua ausência nos funerais. As dezenas de grupos prontos a se indignar 24 horas por dia contra os delitos da polícia, reais ou imaginários, nada viram de anormal na conduta do governador. A mídia ficou em silêncio. É o aberto descaso pela vida, quando essa vida pertence a um policial. É, também, a capitulação diante de uma insensatez: a de ficar neutro na guerra aberta que os criminosos declararam contra a polícia no Brasil.
Há mais que isso. A moda predominante nos governos estaduais, que vivem apavorados por padres, jornalistas, ONGs, advogados criminais e defensores de minorias, viciados em crack, mendigos, vadios e por aí afora, é perseguir as suas próprias polícias — com corregedorias, ouvidorias, procuradorias e tudo o que ajude a mostrar quanto combatem a "arbitrariedade". Sua última invenção, em São Paulo, foi proibir a polícia de socorrer vítimas em cenas de crime, por desconfiar que faça alguma coisa errada se o ferido for um criminoso; com isso, os policiais paulistas tornam-se os únicos cidadãos brasileiros proibidos de ajudar pessoas que estejam sangrando no meio da rua. É crescente o número de promotores que não veem como sua principal obrigação obter a condenação de criminosos; o que querem é lutar contra a “higienização" das ruas, a “postura repressiva” da polícia e ações que incomodem os “excluídos”. Muitos juízes seguem na mesma procissão. Dentro e fora dos governos continua a ser aceita, como verdade científica, a ficção de que a culpa pelo crime é da miséria, e não dos criminosos. Ignora-se o fato de que não existe no Brasil de hoje um único assaltante que roube para matar a fome ou comprar o leite das crianças. Roubam, agridem e matam porque querem um relógio Rolex; não aceitam viver segundo as regras obedecidas por todos os demais cidadãos, a começar pela que manda cada um ganhar seu sustento com o próprio trabalho. Começam no crime aos 12 ou 13 anos de idade, estimulados pela certeza de que podem cometer os atos mais selvagens sem receber nenhuma punição; aos 18 ou 19 anos já estão decididos a continuar assim pelo resto da vida.
Essa tragédia, obviamente, não é um “problema dos estados”, fantasia que os governos federais inventaram há mais de 100 anos para o seu próprio conforto — é um problema do Brasil. A presidente Dilma Rousseff acorda todos os dias num país onde há 50.000 homicídios por ano; ao ir para a cama de noite, mais 140 brasileiros terão sido assassinados ao longo de sua jomada de trabalho. Dilma parece não sentir que isso seja um absurdo. No máximo, faz uma ou outra reunião inútil para discutir “políticas públicas” de segurança, em que só se fala em verbas e todos ficam tentando adivinhar o que a presidente quer ouvir. Não tem paciência para lidar com o assunto; quer voltar logo ao seu computador, no qual se imagina capaz de montar estratégias para desproblematizar as problematizações que merecem a sua atenção. Não se dá conta de que preside um país ocupado, onde a tropa de ocupação são os criminosos.
Muito pouca gente, na verdade, se dá conta. Os militares se preocupam com tanques de guerra, caças e fragatas que não servem para nada; estão à espera da invasão dos tártaros, quando o inimigo real está aqui dentro. Não podem, por lei, fazer nada contra o crime — não conseguem nem mesmo evitar que seus quartéis sejam regularmente roubados por criminosos à procura de armas. A classe média, frequentemente em luta para pagar as contas do mês, se encanta porque também ela, agora, começa a poder circular em carros blindados: noticia-se, para orgulho geral, que essa maravilha estará chegando em breve à classe C. O número de seguranças de terno preto plantados na frente das escolas mais caras, na hora da saída, está a caminho de superar o número de professores. As autoridades, enfim, parecem dizer aos policiais: “Damos verbas a vocês. Damos carros. Damos armas. Damos coletes salva-vidas. Virem-se”.
É perturbadora, no Brasil de hoje, a facilidade com que governantes e cidadãos passaram a aceitar o convívio diário com o mal em estado puro. É um "tudo bem” crescente, que aceita cada vez mais como normal o que é positivamente anormal — “tudo bem” que policiais sejam assassinados quase todos os dias, que 90% dos homicídios jamais cheguem a ser julgados, que delinquentes privatizem para seu uso áreas inteiras das grandes cidades. E daí? Estamos tão bem que a última grande ideia do governo, em matéria de segurança, é uma campanha de propaganda que recomenda ao cidadão: “Proteja a sua família. Desarme-se”. É uma bela maneira, sem dúvida, de namorar com o suicídio.

3 comentários:

  1. Meu amigo Rafael,
    Publiquei no meu blog, sob o título "Nem Aqui Nem na China", um comentário sobre esse artigo do Guzzo. Pra mim, ele tem forte conteúdo de natureza até fascista. Se você tiver interesse, dê um pulinho la (www.marcelojugend.blogspot.com, lembra?) e d~e uma lida. Gostaria imensamente de uma opinião tua sobre minha posição. Grande abraço.
    Marcelo Jugend.

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  2. Rafael,
    Recebi teu comentário no meu blog. Agradeço pela leitura do texto. E, sobre conversarmos pessoalmente, estou à tua disposição. É só você marcar hora e local. Tenho o maior prazer de trocar ideias com pessoas inteligentes. Grande abraço.
    Marcelo Jugend

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  3. Minha família teve a oportunidade de viver por longos anos, nos EUA, seja à trabalho ou estudo. Somaram-se mais de 10 anos imersos na cultura daquele país que, com todas as suas mazelas, preza muito pela Lei, pelo Estado deDireito e pela Proteção do Estado da qual faz juz (e verdadeiramente recebe), fruto dos seus impostos.

    Nos raros casos em que a vida de políciais foram ceifadas por marginais, todos (repito: TODOS) tiveram o agradecimento dos seus amigos, chefes, Prefeitos e Governadores. A repercussão nas mídias não só contando o fato, mas acompanhando o enterro, discutindo a segurança pública e níveis de violência contra policiais e conclamando a sociedade para que denunciasse os suspeitos de cometerem aqueles crimes.

    As chamadas contra os "Cop Killers" naquele País estão entranhadas naquela sociedade a mais tempo que a nossa frágil percepção de Cidadania. Sabem que aquele que ataca o braço armado do Estado, àqueles que os protegem é o mais pernicioso elemento que a sociedade produz. E as opções dadas são ou Render-se ou ser Neutralizado (caso não Cumpra imediatamente à Ordem da autoridade policial), a bem da segurança pública.

    No meu Estado, já li e ouvi que um quadro de quase 100 policiais mortos em um ano 'estava dentro do esperado estatísticamente', por um Ex Sec. de Seg. Pública (também Ex Dep. Federal e agora... Prefeito).

    Como assim? Normal? Sim senhores! "Normal"...

    Dos nossos políticos atuais, não perderei o meu, nem o tempo dos senhores tecendo comentários... Sabemos do que se trata e quem tem sofrido com as piores consequências dos seus atos.

    Ainda temos um longo caminho a percorrer. Ainda espero que todos os brasileiros tenham lido, ao menos, até o Art 5º da nossa C.F. Já seria uma Vitória se entendessem e respeitasem este... básico.

    Um dia, ainda vivo, quero ver os nossos Representantes indignados com ataques à policiais e uma cobertura jornalistica isenta, madura e positiva do significado tanto no aspecto Real, quanto no Simbólico do que um ataque à polícia significa na vida do cidadão.

    Finalizando, me desculpo pelo desabafo.
    Estou policial a mais de duas décadas e sou Cidadão Brasileiro a quase cinco.
    Os sonhos ainda vivos e, no sangue, a Certeza de ter um Papel Importante à Cumprir, como funcionário público da área de Segurança.

    Parabéns à clareza desta matéria, da coluna do J.R. Guzzo e um fraterno abraço ao Del. Rafael.
    Ten Cel Roberto.

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